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A Fotografia que Nunca Foi Tirada

Essa fotografia não existe.
Nunca houve o momento, a luz, o clique. Nenhum fotógrafo esteve lá.
Ela é o registro perfeito de algo que não aconteceu — e, ainda assim, você sente que pode acreditar.

por Rafael Boccardi

Essa fotografia não existe.
Nunca houve o momento, a luz, o clique. Nenhum fotógrafo esteve lá.
Ela é o registro perfeito de algo que não aconteceu — e, ainda assim, você sente que pode acreditar.

Fotografias fornecem evidência. Algo de que ouvimos falar, mas duvidamos, parece provado quando nos mostram uma fotografia disso.
— Susan Sontag

Durante décadas, esse foi o poder da fotografia: transformar dúvida em certeza. Cada registro carregava o peso do tempo e do espaço: o “aqui” e o “agora” impressos na imagem.

Hoje, a inteligência artificial desafia essa relação. Uma frase digitada em um prompt — “retrato de um protesto em 1982, sob chuva torrencial, capturado em película Kodak” — pode gerar uma imagem tão convincente quanto qualquer registro histórico. A diferença? Ela não documenta nada. É memória sem passado.

Prompt: Ultra-realistic black-and-white photojournalism portrait during a street protest in heavy rain, São Paulo, 1982. Tight close-up of a soaked young man centered, wet hair stuck to his forehead, intense eye contact; crowded frame with out-of-focus shoulders and heads as foreground occlusion; raindrops streaking across the image, water beads on skin. High-contrast Kodak Tri-X 400 film look, visible grain, shallow depth of field (85mm, f/2), slight motion blur on the rain, Leica rangefinder documentary aesthetic, cinematic lighting from a streetlamp. No banners, no text, no logos, no police. —ar 3:2 —style raw —v 6

QUANDO A PROVA DEIXA DE SER PROVA

Fotografias sempre puderam ser manipuladas. Desde os truques de estúdio no século XIX até o Photoshop, aprendemos a desconfiar. Mas havia um negativo, um fotógrafo, uma cena real.

Com imagens geradas por IA, essa base desaparece. Não há original, não há evento. A imagem nasce “pós-fato” — ou, pior, sem fato algum.

Isso desafia fundamentos de jornalismo, direito e história. Se qualquer pessoa pode criar uma “foto” de algo inexistente, como provar o que realmente aconteceu? Iniciativas como a Coalition for Content Provenance and Authenticity (C2PA) já tentam registrar a origem de arquivos digitais, mas a velocidade da desinformação supera de longe os mecanismos de verificação.

Essa realidade não é nova — apenas se sofisticou dramaticamente. Já em 2019, o Instituto Cappra alertava para os riscos da "guerra de desinformação" (p. 33) em um mundo em que qualquer pessoa tem acesso instantâneo a bilhões de informações. Na época, o problema estava na velocidade: uma busca simples retornava um bilhão de resultados em menos de um segundo, criando um oceano de dados em que verdade e mentira se misturavam indiscriminadamente.

O que mudou foi a natureza da evidência. Se antes precisávamos aprender a distinguir textos verdadeiros de falsos, hoje enfrentamos o desafio de questionar a própria realidade visual. A inteligência artificial transformou a criação de "provas" em um processo democratizado e instantâneo — qualquer prompt pode gerar uma fotografia convincente de algo que nunca aconteceu.

Infográfico: demonstração visual das diferentes formas de disseminação social da informação.

O IMPACTO PSICOLÓGICO: ENTRE O REAL E O PLAUSÍVEL

A força da fotografia está na sua capacidade de provocar reação imediata. E aqui mora o risco: imagens falsas convincentes acionam nossas emoções como se fossem reais.

Pesquisas já mostravam que as fake news visuais têm cerca de 70% mais chances de serem compartilhadas do que notícias textuais falsas — dado comprovado em um estudo do MIT publicado na Science em 2018. E isso foi antes mesmo da popularização das IAs generativas. Hoje, não falamos mais de montagens amadoras, mas de composições capazes de imitar a estética documental com perfeição, borrando as fronteiras entre registro e invenção.

Além da veracidade, há o dilema da autoria. As IAs são treinadas em bilhões de imagens, muitas vezes sem consentimento dos fotógrafos. Ao gerar uma “fotografia” no estilo de Sebastião Salgado ou Steve McCurry, a máquina não só imita a estética: ela se apropria de anos de prática, olhar e experiência.

Dois episódios recentes ilustram dramaticamente o que está em jogo: em 2023, uma obra criada por IA venceu o Sony World Photography Awards na categoria Criativo Aberto — e provocou indignação entre fotógrafos e artistas, que viram na premiação uma sinalização de que a sensibilidade humana poderia ser substituída por algoritmos.

Já em 2024, o fotógrafo Miles Astray registrou a célebre imagem do flamingo “sem cabeça” e a submeteu, como protesto simbólico, ao concurso 1839 Awards na categoria de IA. A foto conquistou o 3º lugar e o prêmio popular — até que ele revelou que era totalmente real. A obra foi desclassificada, mas não sem deixar uma importante reflexão sobre o valor da criatividade humana em tempos de IA.

PROBLEMAS CONCRETOS DAS FOTOGRAFIAS GERADAS POR IA

  • Desinformação política: fotos falsas influenciando opinião e eleições.

  • Difamação pessoal: deepfakes usados para destruir reputações.

  • Erosão da confiança pública: se tudo pode ser fabricado, até fotos reais passam a ser questionadas.

  • Apagamento cultural: estilos únicos absorvidos sem crédito ou remuneração aos artistas.

  • Ruído histórico: registros falsos misturados a arquivos reais, comprometendo pesquisas futuras.

CAMINHOS POSSÍVEIS

  • Proveniência digital: metadados que registrem origem e manipulações.

  • Educação visual: formar um público crítico diante de imagens.

  • Regulação ética: normas claras para o uso da IA visual em jornalismo e documentação.

  • Reconhecimento e compensação: garantir crédito e remuneração a artistas cujas obras servem de base para modelos generativos.

A fotografia sempre foi mais que luz e sombra. É memória, prova e narrativa.
Mas se deixarmos que imagens inventadas circulem sem contexto, corremos o risco de transformar o mundo em um álbum infinito de lembranças que ninguém viveu.

A pergunta não é se a máquina mente.
É: quando nós paramos de perguntar?

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A Árvore que a Máquina Não Viu Crescer

Entre dragões, florestas e paisagens que parecem saídas de um sonho, o Studio Ghibli construiu mundos que marcaram gerações. Mas em uma era em que as máquinas também começam a sonhar, a pergunta que não quer calar é: o que acontece quando a inteligência artificial tenta replicar a alma de um estúdio como o Ghibli?

por Rafael Boccardi

Cena do filme Meu Amigo Totoro (1988)

Entre dragões, florestas e paisagens que parecem saídas de um sonho, o Studio Ghibli construiu mundos que marcaram gerações. Mas em uma era em que as máquinas também começam a sonhar, a pergunta que não quer calar é: o que acontece quando a inteligência artificial tenta replicar a alma de um estúdio como o Ghibli?

O uso da inteligência artificial generativa na produção de imagens vem reacendendo debates antigos sob uma nova luz: afinal, o que é criação e o que é cópia em tempos de algoritmos?

Não se trata apenas de estética. Trata-se de memória, autoria e ética.

Recentemente, a estética do Studio Ghibli passou a ser replicada por modelos generativos como Midjourney, DALL·E e Stable Diffusion. Basta uma instrução textual simples, como “a landscape in Ghibli style”, e surgem imagens que ecoam a paleta, os traços e as composições dos filmes de Hayao Miyazaki.

Essas imagens, no entanto, não nascem do nada. Os modelos generativos são alimentados por vastos conjuntos de dados, muitas vezes sem consentimento explícito de artistas, estúdios ou autores originais. A obra, nesse contexto, vira matéria-prima invisível de um novo tipo de produção automatizada, onde o conceito de autoria se dilui.

Do ponto de vista jurídico, isso levanta questões sérias. A legislação de direitos autorais protege a originalidade e o vínculo entre criador e obra. Mas como aplicar essa lógica a um modelo que gera imagens baseadas em milhares de obras humanas, mas que não “cria” de forma consciente?

Ainda vivemos uma lacuna legal e ética. A IA não possui intencionalidade ou vivência, portanto não pode ser considerada autora. Porém, os dados usados por ela possuem história, cultura e propriedade.

O Studio Ghibli, conhecido por rejeitar até animações em 3D para preservar a delicadeza do traço manual, agora se vê involuntariamente incorporado a bancos de dados que treinam máquinas a simular sua estética. Isso nos obriga a refletir: estamos prestando homenagem ou apropriando-nos de sua linguagem sem o devido crédito?

Miyazaki Hayao — Co-fundador do Studio Ghibli

Porque uma IA pode replicar um traço. Mas não compreende o peso simbólico de uma árvore que cresce lentamente num campo animado por Miyazaki.

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